Evento marcou nova etapa do projeto de reabilitação da espécie ameaçada, com participação ativa de moradores da Comunidade Igarapé do Costa.
Na calmaria das águas que banham a Comunidade Igarapé do Costa, em Santarém, oeste do Pará, o som dos motores deu lugar ao silêncio respeitoso de quem testemunha um reencontro com a natureza. Na região de várzea do município, seis peixes-boi-da-amazônia (Trichechus inunguis) voltaram ao seu habitat natural após anos de reabilitação no Zoológico da Universidade da Amazônia (ZOOUNAMA). O evento reuniu moradores, autoridades ambientais e representantes da Ser Educacional e marcou mais uma etapa do projeto que, há 17 anos, atua na recuperação de filhotes órfãos da espécie, exclusiva da bacia amazônica e ameaçada de extinção.
Entre os protagonistas da ação, estava Joanilson dos Santos, tratador e morador da comunidade. “São 15 anos e seis meses de trabalho. Nascido e criado aqui. Sempre converso com os pescadores, com os jovens, com meus amigos. Porque não adianta só ter o projeto. Se a comunidade não ajudar a zelar, quem vai ajudar?”, questionou com firmeza e orgulho.
Educação que atravessa gerações
A ação mobilizou crianças, jovens e adultos da comunidade. A moradora Eugênia Ribeiro acompanhou tudo de perto. “Estou criando dois netinhos e ensino a eles a importância de preservar. A água está diferente, parece ferrugem. Se a gente não cuidar, como vai ser no futuro?”, questionou enquanto observava os netos na canoa, atentos à movimentação.
A jovem Iandra de Souza, de 11 anos, participou pela primeira vez. “É maravilhoso quando eles vêm aqui. A gente aprende. Se a gente sabe e os outros não sabem, eles podem jogar lixo na água e o peixe-boi pode comer e ficar doente”, disse, com a simplicidade de quem já compreende o valor da vida.
Por trás de cada um, uma história de cuidado
Os animais chegaram ao ZOOUNAMA ainda filhotes, debilitados, órfãos e vítimas da caça ilegal de fêmeas lactantes. “Eles passaram por um processo longo de reabilitação. Alguns vieram para cá antes, passaram pela aclimatação na base flutuante e, agora, estão prontos para voltar à natureza”, explicou o médico veterinário Jairo Moura.
Cada filhote recebeu carinhosamente nomes que remetem às comunidades onde foram resgatados ou às pessoas envolvidas em seus salvamentos:
Araraú – macho resgatado em 2021, na comunidade Araraú, em Alenquer;
Itarim – resgatado em 2016, no Lago do Itarim, Rio Amazonas, em Santarém;
Pacoval – resgatado em 2014, na Comunidade Pacoval, em Alenquer;
Piracaoera – fêmea resgatada em 2016, na Comunidade Piracoera de Cima, em Santarém;
Ruck – resgatado em 2013, na Comunidade Irateua, em Óbidos;
Tapiri – resgatada em 2014, na Comunidade Tapará Mirim, em Santarém.
O jardineiro da Amazônia
O peixe-boi é conhecido como o jardineiro da Amazônia. “Ele come até 13% do seu peso em plantas aquáticas por dia. Isso é muito. E com isso, ele também defeca muito. As fezes e a urina viram nutrientes para o plâncton e os microrganismos, alimentando outros animais. Ele mantém a cadeia trófica funcionando”, explicou Jairo.
Luis Albarelli, analista ambiental do IBAMA, reforçou que ele fertiliza as águas, melhora a navegabilidade dos rios e ajuda a manter a qualidade de vida do ribeirinho. “É um animal com função ecológica enorme. Nosso objetivo é ele sair da lista de espécies ameaçadas”.
Consciência ambiental
A escolha da comunidade para a soltura não foi aleatória. “Aqui tem peixe-boi nativo, planta aquática em abundância e, principalmente, consciência ambiental. As pessoas respeitam o defeso, cuidam do lago. Essa comunidade é referência entre as mais de 70 da região”, destacou Jairo.
Além disso, há um vínculo afetivo e institucional com o território. “Muitos dos nossos funcionários são daqui ou têm parentes na comunidade. Isso fortalece o projeto e cria um elo de confiança com os moradores”, completou.
Antes da soltura definitiva, os animais passaram por uma fase essencial: aclimatação em tanques com água do rio, com pH, turbidez e ondas semelhantes às do ambiente natural. “É um processo por etapas. Os animais que estavam aqui foram realocados para Santarém e os novos chegaram. Daqui a algum tempo, tudo se repete. É um ciclo contínuo de conservação”, explicou Jairo.
Parceria institucional
A diretora de Biodiversidade e Florestas do IBAMA, Lívia Martins, destacou que o projeto é financiado com recursos oriundos da conversão de multas ambientais. “Essa política pública devolve à natureza os serviços ecossistêmicos perdidos com o desmatamento e a caça ilegal”.
Já Claudia Barros, diretora de Licenciamento Ambiental do IBAMA, lembra do papel estratégico do licenciamento. “Além de garantir que obras ocorram de forma adequada, ele traz externalidades positivas. Por exemplo, o apoio a projetos de conservação como este”.
Projeto Peixe-boi-da-Amazônia
O ZOOUNAMA é uma instituição sem fins lucrativos, localizada no oeste do Pará, e está entre os principais polos de apoio à vida silvestre de Belém e Manaus. Ele tem se destacado na reabilitação de animais silvestres da fauna local, oferecendo suporte técnico especializado e estruturas adequadas para o recebimento e tratamento de animais em perigo.
Desde 2008, o ZOOUNAMA atua na reabilitação de filhotes órfãos de peixe-boi-da-Amazônia, tornando-se uma referência no estado do Pará. O local possui uma área exclusiva para a manutenção de mamíferos aquáticos, sendo equipada com piscinas apropriadas para o tamanho de cada animal, e conta com uma equipe formada por profissionais de medicina veterinária, biologia e tratadores especializados.

“Estamos soltando seis. Mas o projeto já recebeu mais de 150 animais e dominamos todo o processo, do resgate à soltura”, afirmou Hipócrates Chalkidis, gestor do zoológico. “Esse trabalho envolve corpo técnico, materiais e logística. Quando tudo dá certo, é porque houve domínio de todos os processos. E isso nos permite devolver à natureza animais que, em tese, nem deveriam estar conosco”, completou.
Paro o presidente da Ser Educacional, mantenedora da UNAMA, Jânyo Diniz, o evento também significa o resultado de um esforço de aproximar a academia à comunidade. “As instituições de ensino superior não podem ficar fechadas em si mesmo. É preciso fazer projetos que, de fato, impactam positivamente a sociedade como um todo. Muitos desses animais estão há quase 10 anos com a gente em um processo de recuperação e aclimatação. Esse trabalho só foi possível de ser realizado por conta da parceria com a comunidade local, com essa consciência do cuidado”, pontuou.
Henrique Britto
Assessor de Imprensa – UNAMA SANTARÉM